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Psicólogo e consultor em saúde mental, Lucas Veiga se posiciona a favor do que chama de descolonização dos ambientes

A representatividade racial é um tema bastante citado nos noticiários e nas redes atualmente, mas pouco se fala sobre ela no ambiente educacional. No sentido amplo, representatividade significa garantir a expressão dos interesses dos diferentes grupos nos variados ambientes sociais.

Na prática, é muito mais complexo do que isso, pois reflete na maneira como entendemos nosso passado e presente, como nos relacionamos em sociedade e como ensinamos nossas crianças e adolescentes nas escolas.

Para nos ajudar a fazer uma introdução a esse tema, convidamos um especialista na área: o psicólogo, mestre em psicologia clínica e consultor de saúde mental Lucas Veiga, que concedeu uma entrevista em vídeo ao nosso blog.

Ele é idealizador e professor dos cursos “O cuidado em saúde mental no contemporâneo”, “Introdução à Psicologia Preta” e “Frantz Fanon e a esquizoanálise”. Todos os cursos são ministrados através do site descolonizando.com que, além das aulas, reúne artigos, palestras e outros trabalhos desenvolvidos pelo especialista.

Lucas participou do 3º Congresso LIV Virtual, em uma roda de conversa com nomes como a jornalista Glória Maria, o MC e escritor Emicida e a escritora Conceição Evaristo. Confira o vídeo e a descrição da entrevista exclusiva que o psicólogo concedeu ao LIV, abordando temas como temas como a descolonização dos conteúdos e dos ambientes e o papel da escuta para o desenvolvimento na infância e adolescência.

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5 perguntas para Lucas Veiga: representatividade, escuta e educação

Como se constrói a representatividade e como as escolas podem promovê-la?

De acordo com o psicólogo, a noção de representatividade começa ainda na infância, quando, por volta de 1 ano e 6 meses de idade, as crianças passam a se reconhecer como indivíduos dissociados da figura materna e do ambiente ao seu redor. “Essa imagem corporal não está colocada para a criança até este momento da vida dela”, explica. É apenas aos poucos e com o auxílio do cuidador que elas começam os primeiros passos de construção de sua autoimagem.

Além da figura materna, o reconhecimento vem de fontes diversas, como as relações de dentro da própria família, na creche, nas interações com a televisão ou o computador, as propagandas, os desenhos animados, etc. Aos poucos, a criança passa a reproduzir em brincadeiras o que absorve dessas fontes, aponta Lucas:

“Essas imagens vieram dos desenhos, programas infantis, livros infantis, os símbolos que entram no imaginário da criança, vão dando a possibilidade de brincar com esses símbolos e se imaginar nesses lugares fazendo essas coisas, sendo professora, médico, dentista, ator, apresentadora etc.”

Nesse sentido, o psicólogo explica que, em um recorte racial dessas imagens, percebe-se que majoritariamente os símbolos atrelados à beleza, autoridade e inteligência são pessoas brancas. Isso gera um impasse para crianças de outras raças na construção da própria imagem, como destaca Lucas:

“Que imaginações de mundo possíveis estão sendo cerceadas por essa criança negra que consome esses símbolos tão predominantemente brancos? A importância dessa discussão da representatividade na escola é fundamental para o processo de desenvolvimento saudável da subjetividade de uma criança negra”.

Como exemplo, o psicólogo menciona o efeito positivo da jornalista Maju Coutinho na construção da representatividade das meninas negras:

“Quando a gente oferece para crianças filmes, desenhos, livros em que há personagens negros ocupando lugares de beleza, de poder, de autoridade, de protagonismo, isso traz um fortalecimento para o processo de construção da autoimagem da criança negra, dentro de um registro positivo que se conecta com sua potência, com sua beleza, e não um registro de menos valia, como o racismo desde cedo tenta empurrar nossas crianças negras.”

O que é descolonização da saúde mental e como esse conceito pode contribuir para a educação?

Para responder a essa questão, Lucas Veiga destaca que, ao longo de sua formação em psicologia e atuação clínica, observou a ausência de materiais necessários para o atendimento e cuidado em saúde mental adequado à população negra. Em seu entendimento, essa lacuna é causada pela formação predominante colonial nas graduações de psicologia, com importação de conceitos europeus e norte-americanos.

Nesse sentido, o psicólogo aponta uma formação falha em trazer um atendimento necessário adequado para a população negra, especialmente em um país com um histórico de miscigenação como o Brasil:

“Há uma série de intelectuais importantíssimos na história das produções de conhecimento em torno da saúde mental que são apagados da formação em psicologia. Descolonizar tem a ver com a gente marcar que essa formação é colonial, e que não é suficiente para pensar a realidade brasileira, um país com 54% da população de negros e negras.”

Usando como exemplo a descolonização da psicologia, Lucas explica que o conceito poderia ser considerado também na educação, e nos propõe a reflexão:

“A nossa mentalidade também foi colonizada e descolonizar a nossa mente tem a ver com a gente se descolonizar um pouco dessa ideia de que é na Europa que está o saber ou a verdade das coisas, e passarmos a produzir conhecimento sobre nós mesmos […]. A gente pode pensar isso junto com a educação porque, ainda hoje, muitos livros didáticos trazem a história do negro no Brasil circunscrita exclusivamente à história da escravidão, como se a história do povo preto começasse e terminasse com a escravidão, e não é verdade.”

Ainda dentro da perspectiva educacional, ele destaca que ainda há. no Brasil, narrativas que contam a história a partir apenas da visão do colonizador europeu e pouco da perspectiva de outros povos:

“A descolonização da educação tem a ver com a pensar a História a partir da perspectiva dos povos africanos e povos indígenas que viveram o período de fundação do Brasil com todo o jogo de violência que estava imposto pelo colonizador. Como as tecnologias ancestrais indígenas e africanas possibilitaram, por exemplo, que esses povos sobrevivessem?”

Ele ainda fala sobre a importância do compartilhamento de saberes entre os povos negros e indígenas para com os brancos e como isso contribuiu para que o colonizador continuasse conquistando outros povos, permitindo inclusive sua sobrevivência. Ainda menciona a necessidade de dar crédito a esses povos pela resistência e a maneira como conseguiram sobreviver em um período de tamanha violência, como foi a fase da colonização brasileira.

Que caminhos as escolas podem buscar para ter mais representatividade?

Como referência para as escolas, o psicólogo cita a Lei nº 10.639, que determina o ensino de cultura africana e afro-brasileira nas escolas, considerada fundamental para descolonizar a educação ao trazer produções de conhecimento negras e africanas sobre as mais variadas disciplinas.

“O ensino de cultura e da história africana e afro-brasileira nas escolas tem um efeito muito importante na construção da autoimagem e da identidade negra de crianças e adolescentes. É poder conectar-se à sua racialidade dentro de um registro de positividade e de resistência.”

Ele aponta também a necessidade de promover a inserção de referências negras para além da narrativa histórica atrelada à escravidão, com produções dentro do registro escolar e acadêmico, mas também com produções informais, como o samba, a capoeira e o funk para dentro da escola.

“Existem materiais didáticos que já trazem essa discussão de História e cultura africana e afro-brasileira para as escolas disponibilizada pelo próprio Ministério da Educação. Há um trabalho de pesquisa em torno desses materiais para que as escolas possam avançar nessa descolonização da educação.”

A arte pode ser uma ferramenta na expressão e promoção dessa representatividade nas escolas?

A arte nos possibilita tanto a expressão das nossas alegrias, angústias e problemas como também uma possibilidade de escape de um cenário de opressão, explica Lucas.

“Quando olhamos para arte negra, por exemplo, há produções que trazem uma expressão de questões de angústias, de alegrias e de dores. E, ao mesmo tempo, de fazer da própria produção artística uma forma de escapar das engrenagens de opressão que o racismo nos impõe.”

Para além disso, ele explica que o contato de crianças e adolescentes com a arte tem uma função de poder estabelecer uma relação estética com a vida. “Quando a gente estimula as crianças a terem contato e produzirem arte desde muito cedo, de algum modo a gente está convidando essas crianças a terem uma relação estética com a sua vida, ou seja, fazer da sua própria vida uma obra de arte”, destaca.

Como a escuta ativa contribui para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes?

Outro tema abordado na entrevista com Lucas Veiga foi o impacto da escuta para o desenvolvimento socioemocional. Sobre isso, o psicólogo diz que “vivemos em um tempo de pouca escuta. E explica: “Por vezes estamos muito dispersos, com muitas notícias, questões complexas acontecendo ao mesmo tempo, muitos estímulos nas redes sociais. O efeito do isolamento fez com que a gente mergulhasse ainda mais nos dispositivos eletrônicos”.

Para ele, embora valiosos, esses avanços trazem dificuldades comportamentais como seu uso excessivo. “O uso mais compulsivo dos dispositivos tecnológicos tem o efeito de produzir em nós um estado de dispersão. Quando a gente fica rolando as barras do e-mail ou das redes, essas mensagens que ficam se atualizando têm um efeito psíquico em nós de termos dificuldade de nos concentrar em coisas mais prolongadas”, aponta.

Nesse sentido, ele relata que crianças que tendem a usar mais estes dispositivos podem vir a ter problemas de concentração em sala de aula. Em adultos, o efeito seria a redução na capacidade da escuta:

“Estando nesse ritmo de maior dispersão, pelo próprio contexto que estamos vivendo, a capacidade de ouvir pode ser prejudicada. E ouvir o outro tem a ver com a gente, em primeiro lugar, esvaziar um pouco de nós mesmos, das nossas pré-concepções, do que a gente considera ideal, para conseguir verdadeiramente ouvir a perspectiva do outro.”

Na interação com crianças e adolescentes, destaca, pais e professores podem mitigar as dificuldades de relação interpessoais buscando um diálogo pautado na escuta ativa:

“Para a gente conseguir verdadeiramente ouvir, a gente precisa dar espaço para que o outro possa expressar o que está trazendo, mesmo que eu discorde […]. A gente sustenta um diálogo encontrando nas nossas diferentes posições aquilo que tem de comum e aquilo que diverge para, a partir de então, darmos encaminhamento juntos. Ouvir é um exercício que tem a ver com a gente abrir mão um pouco dessa posição de detentor da verdade e do saber”.

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