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Em artigo, Sebastião Rinaldi, professor de Português como Língua de Acolhimento no Instituto Adus, fala sobre os desafios da Educação de refugiados na país

Sebastião Rinaldi*

O ano de 2023 mal começou e algumas mudanças – umas boas e outras nem tanto – começaram a pulsar quando o assunto é migração e direitos humanos. O anúncio por parte do atual Ministério das Relações Exteriores de reintegrar o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular (GCM, na sigla em inglês), da ONU (Organização das Nações Unidas), é algo a ser celebrado, sem sombra de dúvidas. Em 2018, o Brasil foi um dos signatários, ao lado de 180 nações, entretanto, deixou de fazer parte na gestão anterior, iniciada em 2019.

Na contramão desses avanços a serem sublinhados, nós nos solidarizamos com a situação de turbulência no Afeganistão que, devido à tomada de poder pelo Talibã em 2021, impulsionando a debandada de civis para outros destinos – entre tantos, o Brasil –, tornou-se ainda mais sensível. Vários afegãos e afegãs foram chegando ao longo de 2022, muitos deles sem condições apropriadas de acomodação e estadia. E tudo indica que 2023 trará um aumento nesse tráfego.

De acordo com o ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, há 2,6 milhões de indivíduos dessa nacionalidade deslocados dado o caos provocado pela organização terrorista em questão, que dissolveu a constituição e outorgou um regime ditatorial. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em 2022, emitiu 5,8 mil vistos humanitários para pessoas afetadas por essa crise. São Paulo (SP), Morungaba (SP), Guarulhos (SP), Colombo (PR) e Uberlândia (MG) são as principais cidades de regularização migratória, a partir de dados da OIM Brasil – ONU Migração.

Como era de se esperar, no semestre passado, o Instituto Adus – entidade dedicada à acolhida de migrantes e refugiados, na qual sou voluntário como professor de Português como Língua de Acolhimento (PLAC) desde 2017 – registrou um aumento exponencial de pessoas do Afeganistão em busca de diversos serviços que a ONG proporciona, como atendimento/recepção, apoio legal, suporte para candidatura em novos empregos e aulas do nosso bom e velho Português Brasileiro (aqui me cabe). Uma nota de rodapé: a legislação brasileira não os enquadra necessariamente com visto de refúgio; em muitos casos, aplica-se a categoria de acolhida humanitária, a mesma forma de tratamento concedida a muitos haitianos.

Similar a uma alteração radical de temperatura, eu me vi mudando de uma turma totalmente formada por hispânicos (a maioria, homens e mulheres da Venezuela) para um grupo de aproximadamente 20 pessoas, do sexo masculino, vindo do país muçulmano. Minha coordenadora pedagógica mergulhou de cabeça também, assumindo outro curso básico, porém para uma frequência feminina – e tudo isso em respeito a questões culturais dos solicitantes.

Entre outras nuances culturais, há uma visível barreira linguística. Afegãos se comunicam em dari ou pashto (duas línguas indo-europeias, porém distintas entre si), com alfabeto de raiz árabe, sendo que alguns têm domínio do inglês e uma esmagadora maioria nem sequer teve um contato prévio com o nosso idioma. Sob um viés humanitário, as nossas aulas semanais, compulsoriamente em português, adotaram um caráter de exceção e começaram a ser ministradas inicialmente em inglês para esse público. Isso mesmo, aulas de português dadas em inglês – e com tradução simultânea dos alunos multilíngues para seus colegas que dominavam apenas os idiomas de origem. Complexo, para dizer o mínimo.

Para este semestre, novos modelos estão em estudo, como a possibilidade de aulas ministradas nos próprios abrigos (ou camps, como eles se referem), considerando o alto e infeliz índice de evasão, ocasionada por uma série de fatores socioeconômicos desse público. Pondera-se ainda um aumento na quantidade de classes e voluntários, dada a curva crescente de afegãos a chegar.

Mais do que isso, vamos precisar reforçar ações de retenção desses alunos e alunas em sala de aula. Ainda se sabe pouco sobre o encaminhamento dessa audiência em termos de mercado de trabalho, residência, recolocação na nova realidade e até mesmo permanência (ou não) no Brasil.

Um aspecto motivador é o nosso histórico em receber migrantes (muitas vezes, visto até mesmo como uma vocação) – e essa curva é ascendente, felizmente –, além de haver uma plausível tolerância jurídica e burocrática a partir da Lei do Migrante (13.445/2017). Segundo o último relatório do OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais), divulgado em dezembro, no intervalo 2021-2011, o número de imigrantes no mercado de trabalho formal aumentou de 62,4 mil (década anterior) para 188 mil. No mesmo período de dez anos, 298.331 solicitaram o reconhecimento da condição de refugiados no Brasil.

São números expressivos, que saltam aos olhos e nos colocam na rota positiva da agenda humanitária global. Entretanto, para além de recepcionar e abrir portas para um novo começo, é crucial que haja um encaminhamento adequado para que a adaptação flua positivamente – e claro, a fim de que essas trajetórias não caiam na precarização ou no ostracismo.

*Professor de Português como Língua de Acolhimento (Plac) no Instituto Adus e mestrando em Sociologia da Educação na Universidade de São Paulo (USP)

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