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Reflexões para lidar com imprevistos, emergências e desafios conhecidos, como parte de uma transformação contínua da Educação

Toda escola de Educação Básica brasileira deve seguir um conjunto de aprendizagens essenciais, que todos os alunos precisam desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A BNCC orienta, mas não define os detalhes de como essas aprendizagens devem acontecer a cada ano escolar. Cabe a cada escola (ou rede) definir o conjunto de atividades e experiências para proporcionar essas aprendizagens, considerando as necessidades dos diferentes alunos.

Uma parte importante dessa definição se apoia em materiais didáticos e paradidáticos já desenvolvidos previamente, organizados por áreas do conhecimento e anos escolares. As escolas não têm a obrigação de seguir esta ou aquela referência; cabe a cada instituição decidir o quanto e como suas atividades didáticas cotidianas estarão ancoradas no material utilizado. Por exemplo, em dois extremos possíveis: uma escola altamente dependente de material didático e outra com pouca dependência. A escola dependente (Escola A) pode utilizar um material didático já organizado em aulas — bastando consultar o livro e o caderno de exercícios (ou uma plataforma digital) para saber o conteúdo e a atividade das próximas aulas. No outro extremo, uma escola menos dependente (Escola B) pode ter livros de referência como repertório, mas cabe a cada docente decidir se, quando e como usá-los.

Mesmo considerando essa flexibilidade (especialmente em escolas do tipo B), é fato que, em um calendário escolar anual previamente definido, há pouco tempo livre para novas aprendizagens. Essa organização de disciplinas e conteúdos, distribuídos cronologicamente no calendário anual, é conhecida como currículo. De forma mais específica, o currículo planejado e definido em planos prévios é chamado de currículo formal (conforme John Goodlad, em Curriculum Inquiry, 1979).

Como diz o ditado popular, “o homem faz planos e os deuses dão risada”. É difícil imaginar que, seis anos atrás, algum especialista, pesquisador, profissional ou mesmo um leigo interessado em Educação Básica tivesse qualquer ideia dos desafios que escolas e redes iriam enfrentar desde então. O ano de 2020, com a pandemia de Covid-19, interrompeu a Educação mundialmente e trouxe crises sanitárias, sociais e de aprendizagem cujos impactos se estendem até hoje.

O fechamento das escolas pelo isolamento físico, a necessidade do ensino remoto emergencial, o impacto nas relações sociais e familiares e as perdas de aprendizagem provocaram grandes consequências econômicas, sociais, de saúde e desenvolvimento cognitivo. Ninguém estava preparado. Qualquer currículo formal previsto para aquele período perdeu validade. John Goodlad apresenta quatro instâncias de currículo, sendo a primeira o currículo formal: prescrito pelos responsáveis pelo planejamento, intencional, porém distante da realidade.

Durante a pandemia, o currículo formal deixou de fazer sentido. Mas a quarta instância proposta por Goodlad segue permanente: o currículo experienciado, que ocorre na prática. Independentemente do planejado, é o currículo experienciado que se concretiza pela vivência do estudante.

A emergência sanitária e a reconfiguração dos tempos e espaços possíveis de aprendizagem geraram um currículo experienciado radicalmente diferente do formal.

Quando a vida escolar parecia retomar seu curso — mesmo com desafios de recuperação de aprendizagem e saúde mental — surge uma nova “risada dos deuses”.

O 1º semestre de 2023 pressionou o ambiente escolar a olhar para a tecnologia de outra forma. A partir daí, qualquer criança com acesso à internet e um mínimo de conhecimento e curiosidade (ou amigos com dicas) poderia resolver a maior parte das tarefas propostas por professores, recorrendo a plataformas e aplicativos de Inteligência Artificial Generativa — que se multiplicaram e aprimoraram rapidamente. Uma criança ou jovem, diante de um exercício escolar, poderia usar o ChatGPT ou equivalente para obter respostas rápidas e corretas. Em nome da integridade acadêmica e do processo de aprendizagem, escolas passaram a proibir o acesso a essas ferramentas.

Assim como na pandemia, vivemos uma nova transformação emergencial — mas agora a percepção geral dessa emergência é menos explícita. Se antes a escola era o espaço por excelência para desenvolver aprendizagens essenciais, hoje essa realidade se fragmentou.

Crianças e adolescentes agora têm múltiplas fontes de conhecimento, dicas e soluções de tarefas fora dos portões escolares. Dispositivos conectados à internet, fora do horário de aula, permitem contato com colegas, influenciadores, conteúdos e práticas que ampliam e muito as possibilidades de aprendizagem. Por exemplo: diante de dificuldades em ciências para um trabalho da próxima semana, o estudante pode buscar explicações em vídeo, pedir auxílio ao ChatGPT para explicações didáticas e pausadas, solicitar listas de exercícios ou até pedir que ele realize a tarefa completa.

A urgência atual é que, cada vez menos, o currículo formal das escolas se mostra adequado à realidade. Crianças e adolescentes, com recursos digitais a seu alcance, definem de forma mais autônoma o currículo experienciado que vivenciam ao longo do Ensino Fundamental e Médio. Antes de 2023, crianças já buscavam explicações ou exercícios em redes sociais. Hoje, é possível obter resoluções, roteiros de estudo, simulados, ou parte do material didático sob demanda.

No entanto, antes de tentar resolver essa emergência simplesmente restringindo o acesso a tecnologias para manter as aprendizagens tradicionais e diminuir as mudanças nos currículos formais, precisamos refletir:
O que é, afinal, essencial para nossos estudantes aprenderem? Se tecnologias oferecem benefícios e riscos, devemos blindar nossos currículos e perder benefícios para evitar riscos, ou ampliá-los, desenvolvendo pensamento crítico, responsabilidade e ética para usufruir desses benefícios?

Mais que uma sequência de conteúdos e aulas seguidas de tarefas e avaliações, o currículo deve orientar expectativas relevantes de aprendizagem, fundamentadas em evidências e métodos coerentes, integrando a realidade do estudante dentro e fora da escola.

Um sinal claro da emergência é o uso crescente da IA Generativa para entregar evidências de aprendizagem que o currículo exige. Recentemente, ouvi o relato de um professor surpreso com o desempenho fraco de um aluno em uma avaliação manuscrita, após ótimos resultados em tarefas feitas em casa — posteriormente, o estudante admitiu o uso do ChatGPT para essas tarefas.

A analogia, embora simplificadora, é a do atleta que treina na academia, mas aciona o equipamento por controle remoto sem esforço físico. Ao ser avaliado, não reúne a força necessária, pois nunca praticou de verdade. Para o estudante, terceirizar tarefas para aplicativos equivale à movimentação sem esforço — sem pensar, sem escrever, sem errar, não se desenvolve de fato.

Parte da emergência está em definir quais expectativas de aprendizagem manter, como evidenciá-las e exercitá-las. Se o objetivo da atividade for, por exemplo, estimular a criatividade dos estudantes, não faz sentido permitir uso de IA Generativa para tarefas criativas. Já se o objetivo for expressão corporal, não há prejuízo se a IA for usada para nomear movimentos.

Hoje, mais que nunca, é preciso considerar o currículo em sua instância última: o currículo experienciado, que inclui a jornada do estudante fora da escola, mediada por diversos atores.

A vantagem da emergência presente, em comparação com a pandemia, é que estamos mais conscientes. Cabe a nós sermos protagonistas de uma mudança que permita um currículo experienciado significativo, alinhando potencialidades e riscos das novas tecnologias e mantendo um compromisso ético com a transformação responsável — onde objetivos de aprendizagem, avaliações e atividades estejam em sintonia com a vida real do estudante.

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