Na estreia da coluna Transformação Continuada, George R. Stein reflete sobre o papel dos professores na era da IA e os novos rumos da docência
Os recentes e contínuos avanços, bem como a disponibilização pública da Inteligência Artificial Generativa (IAGen), têm despertado questionamentos e desafiado pesquisadores, educadores, profissionais e empresários da área educacional. Vale lembrar que “tudo isto” começou há apenas três anos e já está fortemente presente no ambiente escolar. Uma evidência importante: conforme a 15ª edição da TIC Educação, pesquisa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br ), 70% dos estudantes do Ensino Médio, usuários da internet, já recorrem a ferramentas de inteligência artificial generativa para realizar pesquisas escolares.
Nesse contexto, o ambiente escolar passou a conviver com questões inquietantes e ainda sem resposta sobre o futuro da educação. Tais questionamentos chegam a ser perturbadores, pois é natural termos dificuldade em lidar com um certo nível de incerteza em relação ao futuro e tendemos a nos apegar a processos e abordagens existentes que talvez deixem de existir. Uma dessas questões perturbadoras é: “Se e como a profissão de professores continuará a existir?”
Escrevo estas linhas na semana do Dia dos Professores e, portanto, sinto-me na obrigação de já responder parte da pergunta de forma enfática: sim, a profissão docente continuará a existir. Defendo, inclusive, que os professores terão um papel ainda mais importante neste futuro!
Entretanto, sugiro aqui uma certa abertura e flexibilidade em relação às diversas tarefas que compõem a complexidade da atuação docente para que seja possível adotar diferentes perspectivas em relação ao “como” a profissão docente poderá existir.
Longe de ser uma verdade absoluta ou uma previsão, a proposta que trago é uma reflexão a respeito de uma analogia feita justamente com uma profissão que deixou de existir devido à tecnologia: a de engenheiros de voo.
Sobre engenheiros de voo
O engenheiro de voo era um profissional de altíssima qualificação, responsável por monitorar e controlar funções primordiais para o voo seguro de aeronaves comerciais. Por meio de um painel com medidores, interruptores e botões, ele tinha competência para controlar e atuar sobre o funcionamento dos motores, a pressão, o combustível e os sistemas hidráulico, elétrico e eletrônico. No Brasil, existem algumas dezenas de profissionais habilitados para tal, mas nenhum deles atua mais: em outubro de 2024, a profissão extinguiu-se definitivamente no Brasil com o último voo de um engenheiro de voo. (Uma reportagem interessante com um vídeo emocionante pode ser vista neste link)
A profissão não foi eliminada por uma greve de pilotos ou por falta de demanda, mas sim absorvida e aprimorada pela tecnologia. Em 2024, foi o último voo de um avião que ainda precisava de um engenheiro de voo.
A história da aviação nos oferece uma poderosa metáfora para o momento que a educação vive. Assim como o engenheiro de voo, o professor hoje se vê diante de uma tecnologia com potencial significativo para transformar a sua prática. A chegada da IAGen na sala de aula tem o potencial de automatizar uma série de tarefas que consomem tempo e energia. Ela pode ajudar na elaboração de materiais, gerar exemplos, criar tarefas e até mesmo auxiliar na correção de trabalhos.
No entanto, como já adiantei antes de trazer a analogia do engenheiro de voo, a extinção da profissão não é um ponto comum que trarei, e a analogia vale mais pela análise das diferenças. Pois vamos a elas.
A razão de existir do engenheiro de voo era garantir o correto funcionamento de uma aeronave. Ele tinha tarefas a cumprir que eram relacionadas a monitorar e atuar sobre sistemas mecânicos, hidráulicos, elétricos e eletrônicos de modo a garantir um funcionamento esperado. A maior parte de sua função estava associada ao controle e à operação dos sistemas que garantiam o correto funcionamento do avião. Mas a tecnologia começou a substituir as principais tarefas da profissão. À medida que foi possível desenvolver e embarcar nos aviões uma série de sensores e atuadores para captar informações da aeronave e do ambiente e atuar automaticamente para manter uma situação desejada, o propósito do engenheiro de voo foi transferido para a tecnologia, e a profissão foi se tornando dispensável.
Professores como pilotos
Assim como o engenheiro de voo, o professor tem uma razão de existir, um propósito: propiciar a aprendizagem. E, ao contrário da atuação do engenheiro, a atuação do professor não se dá em uma máquina: o propósito do professor está totalmente vinculado à interação com seres humanos.
É bem verdade que algumas tarefas não dependem tanto da interação com seres humanos: a preparação de materiais, tarefas repetitivas e outras tarefas tipicamente administrativas podem ser assumidas pela tecnologia.
Mas mesmo para tarefas que dependem de interação humana, existem algumas promessas de benefício de uso da IAGen. Atualmente, já existem aplicativos de IAGen que conseguem acessar conteúdos escolares qualificados e interagir com alunos como se fossem tutores incentivadores que não fornecem a resposta, mas instigam e direcionam a reflexão para a aprendizagem. Conforme as interações com os alunos, obtém-se uma orientação distinta.
Entretanto, esses tutores não irão substituir completamente os professores: nem sempre se tem alunos que estão motivados, capazes e/ou com acesso ou disponíveis para interagir com os tutores. A tecnologia, tanto nos sistemas da aeronave quanto na sala de aula, só consegue trabalhar com dados parametrizáveis. Aplicativos do tipo “tutores de IAGen” só conseguem reagir quando o aluno responde e só irão reagir de maneira efetiva quando a resposta do aluno for coerente com parâmetros previamente previstos para a aprendizagem desejada. Professores serão sempre necessários para dar suporte e mediar a aprendizagem de alunos que não conseguem ou não querem interagir com a tecnologia. O tutor artificial nunca irá sentir o cansaço na voz de um aluno, a curiosidade em uma expressão facial ou a frustração em um olhar de alguém que não quer ou consegue interagir com a tecnologia.
A verdadeira inteligência do professor se manifesta exatamente onde a IAGen não consegue obter informações. É na mediação humana, no ato de dar significado ao esforço de aprendizagem, conectando-o com a vida e o contexto. E isto se dá não somente nas atividades e nos momentos de aprendizagem, mas também na inteligência de conhecer e perceber os alunos para, inclusive, usar a IAGen de maneira mais eficaz nas atividades administrativas.
Pilotando a Educação
A profissão de engenheiro de voo foi extinta porque se desenvolveu uma tecnologia de sensores e atuadores capaz de lidar com as situações que o avião poderia enfrentar. A profissão de professor continuará existindo porque as situações de aprendizagem necessitam de “sensores e atuadores humanos”.
Parte das tarefas talvez possam, sim, ser substituídas pela tecnologia. Mas a sensibilidade e a atuação docente serão cada vez mais importantes para definir o futuro da educação. A humanidade docente é indispensável para definir como modificar e redefinir as tarefas com o uso da IAGen. Na “turbulência da aprendizagem”, é o professor que assume a posição de piloto e que toma as decisões mais importantes.
Nesse sentido, dois caminhos complementares para a atuação de professores como pilotos passam por uma atuação docente que:
- considere e contribua com o Modelo SAMR de integração de tecnologia em sala de aula (Substituição, Aumento, Modificação e Redefinição, criado pelo Dr. Ruben Puentedura), no qual o docente será cocriador de novas maneiras de atingir seu propósito, fazendo uso responsável e ético da tecnologia.
- exercite a Mediação Docente Aumentada (conceito criado por mim na obra “A Escola com Inteligência Artificial Generativa: uma jornada transformadora para um futuro que já chegou”), utilizando a IAGen para potencializar a sensibilidade e atuação docente, por meio de cinco competências-chave.
O futuro da educação já está sendo criado por professores que fazem escolhas mais conscientes nesta realidade turbulenta. A tecnologia ajuda, mas são os professores que irão pilotar esta transformação contínua de forma sensível e responsável. Nas próximas colunas exploraremos com mais detalhes estes dois caminhos para que professores seja os pilotos da transformação continuada rumo aos futuros da educação.

George R. Stein é diretor-fundador da Pedagog.IA – Inovação em Aprendizagem, mentor, palestrante internacional (SXSWEDU e innovationhub.school) e professor visitante da Faculdade de Educação da PUC-SP. Além de autor do livro “A Escola com Inteligência Artificial Generativa: uma jornada transformadora para um futuro que já chegou”, ainda atua como conselheiro da Labor Educacional e do doutorado em Liderança Educacional – MUST University.