Na estreia da coluna, Guilherme Cintra reflete sobre como a tecnologia pode ampliar a presença humana na escola e fortalecer o aprendizado
Comecei minha trajetória em sala de aula, aos 18 anos. Em uma turma com 30 alunos aprendendo matemática, rapidamente se percebe quantos níveis de proficiência diferentes coexistem. Fica claro que alguns conhecimentos fundacionais ficaram para trás e que, se fôssemos capazes de compreender essas lacunas e endereçá-las, poderíamos ter um sistema educacional radicalmente diferente.
Mais tarde, como diretor de escola, vi como a cognição e a memória humanas não dão conta sozinhas da complexidade viva de uma comunidade escolar na profundidade que cada estudante merece. Depois, à frente da área de inovação e tecnologia de uma rede municipal com mais de 600 mil alunos, a escala tornava-se exponencial. E, com ela, a certeza de que a tecnologia poderia ser uma aliada fundamental para educadores, estudantes, famílias e gestores públicos.
Em todos esses momentos, porém, uma frustração persistia: ver narrativas simplistas desviando nossa atenção do verdadeiro desafio de integrar tecnologia à educação de forma significativa. Não há atalho. O uso de tecnologia na educação exige humanidade.
É com esse espírito que nasce esta nova coluna. Um espaço para pensar o que chamo de “Tecnologia que Humaniza”.
Uma definição em construção
Não busco uma definição definitiva ou acadêmica, mas, movimentar um diálogo para construirmos uma visão comum. Pessoalmente, quando penso em “Tecnologia que Humaniza”, vejo três ideias principais:
- Centralidade das relações humanas: o centro da educação não é o estudante isolado, mas o tecido de relações humanas que o envolve. Aprender é, antes de tudo, um processo social: exige vínculo, confiança, diálogo e presença. Quando esse entorno está vivo e orientado por objetivos pedagógicos claros, o aprendizado tem chance de florescer.
A “Tecnologia que Humaniza” nasce de uma pergunta: como ampliar a presença de quem educa e de quem aprende? Ferramentas digitais podem reduzir burocracias e ruídos administrativos, mas seu papel mais transformador é o de devolver o foco do professor aos estudantes que mais precisam dele. Quando bem desenhada, a tecnologia amplia a presença do educador em vez de substituí-la. Serve para liberar tempo, não eliminar relações, para permitir escuta e acompanhamento individual, não vigilância.
Ela reconhece o caráter ecossistêmico da educação que é conectar pessoas e propósitos. Não é “A Solução”, mas uma infraestrutura que ajuda agentes a se verem, se comunicarem e agirem juntos. Um sistema educacional mais justo depende tanto de algoritmos quanto de redes humanas. A tecnologia deve estar a serviço dessa coordenação.
- Parte de princípios do que funciona. Para humanos de verdade:
“Tecnologia que Humaniza” se ancora em evidências sobre aprendizagem e desenvolvimento humano. Apoia-se nas ciências da aprendizagem, na pedagogia, na psicologia, na cognição. A tecnologia é meio, não fim. Sem princípios sólidos, caímos no ciclo de frustração de soluções impressionantes, mas sem valor pedagógico.
Muitas vezes vejo abstrações que ignoram a realidade. Como economista de formação (não praticante), lembra-me o homo economicus: um ser idealizado que age racionalmente, útil para modelos matemáticos, mas distante do mundo real. Em educação, criamos algo parecido: o homo educandus, o aluno ideal que aprende por prazer e o professor que sempre tem tempo e incentivo para se desenvolver. Mas a vida real é outra. A escola é complexa, o tempo é curto e as motivações são diversas.
“Tecnologia que Humaniza” entende isso. Não substitui práticas eficazes, mas as fortalece. Testa hipóteses no mundo real, adapta-se aos contextos, evolui com eles.
- Respeita princípios éticos: nenhuma tecnologia é neutra. Se queremos que a inovação educacional humanize, ela precisa estar ancorada em ética e em princípios como a inclusão, que permite que alunos de diferentes realidades possam evoluir, a segurança, que protege dados sensíveis e reduz riscos, e a privacidade, que garante consentimento e limites claros.
A ética deve estar no início do processo, não no fim. Fazer tecnologia sem considerar segurança seria como fabricar carros sem cinto de segurança. Seria mais “eficiente”, mas atualmente, é impensável.
Então, por que a maioria das tecnologias educacionais não humaniza? Em resumo, porque parte de premissas erradas. Muitas soluções nascem de experiências pessoais e de boas intenções. Empreendedores apaixonados querem transformar a educação, mas às vezes apaixonam-se mais pela tecnologia do que pela educação. Tentam mudar o sistema apesar dele, e não com ele.
O sistema educacional parece inerte, mas há razões para isso: milhões de atores, incentivos complexos, avaliações externas, infraestrutura desigual. No cotidiano das escolas, usar tecnologia é difícil. Um problema de login, uma internet instável, e metade da aula se vai.
Os alunos nem sempre se engajam como se imagina, e as famílias têm razões legítimas para hesitar em arriscar o futuro dos filhos em modelos novos. Diante disso, surgem as soluções “simples”: tirar o professor do centro, “gamificar” superficialmente, acreditar que uma ferramenta boa o suficiente resolverá tudo.
Mas isso é uma ilusão antiga. Não existe uma tecnologia que “ensine tudo a todos”. Como uma vez pude presenciar o reitor da Escola de Educação de Stanford dizendo, sabemos educar em larga escala, para qualquer nível socioeconômico, umas duas ou três coisas, e ainda assim com dificuldade. O problema não é apenas técnico: é de engajamento. A maioria das tecnologias esbarra na barreira dos 5%: os alunos naturalmente engajados.
Se queremos mudar isso, precisamos abandonar a ideia de “A Tecnologia” e adotar um portfólio de intervenções, com ou sem ferramentas digitais, ajustadas ao contexto e sustentadas pelo engajamento da comunidade educacional. É menos sedutor em um pitch. Mas muito mais verdadeiro.
Um convite
Escrevo esta coluna movido por um incômodo. Trabalho com EdTechs e sinto a dissonância entre o potencial transformador das ferramentas e o impacto real que elas têm tido. Há bons exemplos, há aprendizados valiosos, mas também há muita frustração evitável.
Este espaço nasce para pensarmos juntos. Para olhar com honestidade o que funciona, o que não funciona e o que poderíamos fazer melhor. Para aprender com quem está no chão da escola, com quem pesquisa, com quem implementa. Para buscar, talvez um dia, uma definição mais concreta, e viva, dessa ideia ainda em construção: Tecnologia que Humaniza.
Sigamos aprendendo juntos.

Guilherme Cintra é Diretor de Inovação e Tecnologia da Fundação Lemann. Economista formado pela PUC-RJ, iniciou sua trajetória na educação aos 18 anos como professor de matemática para jovens de comunidades próximas à universidade. Atuou em fundos de investimento e tornou-se sócio do Gera, focado em educação. No Grupo Eleva, foi diretor de unidade escolar, liderou uma rede de escolas e cofundou o Pátio, área de novos negócios (hoje Grupo Salta). Trabalhou na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro como Coordenador de Inovação e Tecnologia, onde criou os Ginásios Experimentais Tecnológicos, a Olimpíada Carioca de Matemática e sistemas de gestão escolar. Atualmente, dedica-se a escalar qualidade educacional por meio da tecnologia em estados e municípios do país.










