Mensalmente, Mario Ghio aborda temas de grande relevância para o setor, sempre fundamentados em dados, na Coluna X da Educação
Nesta coluna mensal tenho alternado experiências e reflexões pessoais com temas relacionados ao mundo da Educação. Esta é a última coluna deste ano e pensei em fazer algo distinto, descrever uma experiência pessoal e educacional ao mesmo tempo.
Há 27 anos, conheci minha esposa e agora, ao final de 2024, chegamos aos 25 anos de casados. Completamos nossas Bodas de Prata e decidimos tirar uma semana só para nós e conhecer algum lugar especial no Brasil onde nunca tivéssemos estado. Escolhemos o sul da Bahia. Tenho a mania de escolher, junto com a viagem, um livro de autor local como oportunidade de entender melhor a cultura e a história do lugar visitado. Para o sul da Bahia não havia ninguém melhor que Jorge Amado e o livro escolhido foi Capitães da Areia, clássico lançado em 1937 por este fantástico autor baiano.
Aliás, já me cobrava há muito ler Jorge Amado, desde um jantar que tive com Mário Vargas Llosa. Neste jantar, soube que Vargas Llosa havia escrito um livro sobre a Guerra da Canudos com pesquisa histórica feita por Jorge Amado. Este livro se chama A Guerra no Fim do Mundo e é outra preciosidade que recomendo a leitura.
Capitães da Areia trata de um grupo de crianças abandonadas que vivem nas ruas de Salvador cometendo pequenos roubos e furtos. Os protagonistas da estória são crianças comuns, que não têm casa, família, escola e são forçadas a viver, ou melhor, sobreviver numa vida de pequenos adultos. Pedro Bala, Dora, Gato, Boa-vida e os demais personagens, embora fictícios, representam as crianças abandonadas. O livro também trata do privilégio da escola apenas para as crianças de “boa família”, da prática de não vacinar os pobres contra doenças terríveis como a varíola, dos reformatórios que tratavam os menores infratores com violência, dos orfanatos que eram apenas depósitos de órfãos, enfim, um livro primoroso que retrata todas as dificuldades sociais por meio daquelas crianças. A estória tem quase 100 anos, mas ainda é realidade em muitas metrópoles brasileiras.
Uma coisa me chamou a atenção logo no começo, o autor dedica o livro a Anísio Teixeira, um jurista baiano a quem Jorge chamava de amigo das crianças. O INEP do MEC tem por nome Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, entidade que chegou a presidir por mais de uma década. Anísio lutou a vida toda pela escola pública universal, gratuita e laica. Também defendia com afinco a democracia e foi muito crítico à ditadura. Teve seu fim em 1971 quando foi encontrado “caído” no fosso do elevador do prédio de Sérgio Buarque de Hollanda, pai de Chico Buarque.
A luta de homens como Jorge Amado e Anísio Teixeira, entre tantos outros, mudou a forma como a sociedade via a educação pública. A Constituição de 1988 estabeleceu a educação básica gratuita para todas as crianças brasileiras. Por volta de 1996, atingimos a universalidade na oferta da escola. Desde então, passaram ou estão em nossos bancos escolares o equivalente às populações da Alemanha, da França e da Espanha juntas! Todos sabemos que não precisamos mais lutar pelo direito à escola. Nossa batalha agora é pela qualidade.
Voltando à viagem de bodas de prata. Numa manhã de dia de semana estávamos curtindo o sol na praia. Eu estava finalizando a leitura de Capitães da Areia quando 3 crianças apareceram catando latinhas. Três meninos entre 10 e 12 anos. Me incomodou que estivessem fazendo isso em horário de aulas. Chamei-os para conversar e descobri que dois irmãos não estavam na escola porque tinham se mudado recentemente de outra cidade e não havia vagas na escola do bairro, teriam de esperar até o próximo ano letivo. O terceiro me contou que precisava do dinheiro das latinhas para ajudar em casa e para comprar um chinelo para que pudesse voltar à escola. Os três meninos eram espertos, espirituosos e divertidos. Dei-lhes o equivalente a uma semana de coleta de latinhas e pedi que voltassem para suas casas e fossem brincar.
Foi impossível não enxergar naqueles meninos os personagens de Capitães da Areia. Todos inteligentes, articulados, divertidos (talvez como todos os baianos são desde o nascimento) com potencial gigante para terem uma vida feliz e próspera capaz de mudar a realidade social de suas famílias.
Um lado de mim estava triste por ver que nossos esforços ainda não atendem às necessidades de todas as crianças, mas outro teve orgulho e esperança ao perceber que avançamos, avançamos muito, mas precisamos nos mobilizar para que os Pedros-Bala, as Doras, os Gatos, os Boas-vida e todas as crianças brasileiras tenham na escola a ponte para uma vida melhor!
Como é a última coluna do ano, desejo ao leitor e sua família festas maravilhosas, felizes e repletas de amor e que em 2025 possamos todos seguir evoluindo e ajudando a melhoria da educação de nosso país.

Mario Ghio Junior é empresário, membro do Conselho de Administração da Vasta Somos e da SEB Alta Performance, presidente da Abraspe (Associação Brasileira dos Sistemas e Plataformas de Ensino) e do Conselho da Fundação Pitágoras. Também é conselheiro de várias organizações não-governamentais (ONGs) dedicadas à melhoria da educação pública. Foi CEO da Abril Educação, diretor Acadêmico da Kroton e da Estácio (YDUQS), diretor de plataformas educacionais do Grupo Santillana. Iniciou a carreira lecionando Química no Anglo Vestibulares.